Faz uma data que não mexo neste caderno. Agora, tem um resto de sol entrando no quarto, mas o que fica claro é o que a visão não alcança. Sinto uma caixa de madeira trabalhada. Traz na tampa, em entalhe, dois pinheiros, que curvados, cortam a silhueta das montanhas, pequenos pedaços em diferentes tons, envernizados. Não me animo abri-la, nem em pensamento, mas sei o que contém - pedaços de linha, os dedais de alumínio da Cecy, atilhos desgastados, alfinetes tortos, agulhas, e vários botões ímpares, que adorava brincar como soldados. Assovio uma canção estranha que não recordo a fala. O sol da calor e sono, o ruído do pedalar da costura colabora chega para fechar mais as minhas pálpebras. Sonho. Ela tem um cheiro tão pessoal, amadeirado, igual a tudo ali na volta- do oriente, como sugere o sândalo do leque que lhe presentei e que preserva na gaveta da máquina ou no conforto do que resta da cortina velha, aveludada. Aprendi música muito cedo. Violão, e desde então, tenho os dedos duros, engrossados. Sem dedal, a nossa arte faz-se por tessitura. Neste contexto, larguei o som e a rua, e só escrevo. Porém, viro as primeiras páginas sem que nelas me encontre, falta, por ter escolhido antes o desenho e os traços, melhor referência para me compreender por imagem. O entalhe da caixa iluminada, é mais do que linhas, é minha rupestre identidade. Sinto falta do conteúdo; das borrachas, dos fios, das madeiras; do cheiro forte, porém adocicado. Abraço-me aos botões por companheiros, nunca repostos, mas bem guardados, por minha avó que era costureira. Hora de fechar as folhas, de cerrar a caixa, sustentado até o último momento pelo calor que invade. Foi-se o resto do sol e o pensamento. Fica o quarto frio e a saudade.
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