Street photography e alguns textos, porque nunca se sabe o que pode passar pela cabeça ou pela frente.

sábado, 15 de maio de 2010

Caixa de Costura

Faz uma data que não mexo neste caderno. Agora, tem um resto de sol entrando no quarto, mas o que fica claro é o que a visão não alcança. Sinto uma caixa de madeira trabalhada. Traz na tampa, em entalhe, dois  pinheiros,  que curvados, cortam a silhueta das montanhas, pequenos pedaços em diferentes tons, envernizados. Não me animo abri-la, nem em pensamento,  mas sei o que contém - pedaços de linha, os dedais de alumínio da Cecy, atilhos desgastados, alfinetes tortos, agulhas,  e vários botões ímpares, que adorava brincar como soldados. Assovio uma canção estranha que não recordo a fala. O sol da calor e sono, o ruído do pedalar da costura colabora chega para fechar mais as minhas pálpebras. Sonho. Ela tem um cheiro tão pessoal, amadeirado, igual a tudo ali na volta- do oriente, como sugere o sândalo do leque que lhe presentei e que preserva na gaveta da máquina ou no conforto do que resta da cortina velha, aveludada. Aprendi música muito cedo. Violão, e desde então, tenho os dedos duros, engrossados. Sem dedal, a nossa arte faz-se por tessitura. Neste contexto, larguei o som e a rua, e só escrevo.  Porém, viro as primeiras páginas sem que nelas  me encontre, falta, por ter escolhido antes o desenho e os traços, melhor referência para me  compreender por imagem. O entalhe da caixa iluminada, é mais do que  linhas, é minha rupestre identidade. Sinto falta do conteúdo; das borrachas, dos fios, das madeiras; do cheiro forte, porém  adocicado. Abraço-me aos botões por companheiros, nunca repostos, mas bem guardados, por minha avó que era  costureira. Hora de fechar as folhas, de cerrar a caixa, sustentado até o último  momento pelo calor que invade. Foi-se o resto do sol e o pensamento. Fica o quarto frio e a saudade.

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